- Ẹ̀KỌ́ ANCESTRAL
A estética negra não pede licença: ela abre caminhos
- Alice Rodrigues

Em Salvador, cada esquina é uma passarela ancestral. Uma cidade que respira tambor e baianidade, mas que ainda é confrontada pelo peso do dress code (código de vestimenta) eurocentrado, esse código invisível que dita como corpos negros devem se apresentar no espaço público. No Brasil, a roupa nunca foi apenas tecido; foi, sobretudo, estratégia de sobrevivência.
Basta lembrar que, no pós-abolição, homens e mulheres negros eram pressionados a “se vestir como gente de bem” — e “gente de bem”, aqui, era sinônimo de traje europeu: ternos engomados, vestidos longos, lenços para disfarçar turbantes, tudo cuidadosamente escolhido para evitar a pecha de “vadiagem” ou “marginalidade”. Essa vigilância estética que se abateu sobre os nossos corpos se mantém viva até hoje. Nos ambientes corporativos, dreadlocks, tranças ou turbantes ainda são lidos como exóticos, quando não como “impróprios”.
Mas Salvador é uma cidade que desafia essas amarras. Cosmopolita e profundamente afrodiaspórica, ela é palco de uma disputa simbólica: o uso da roupa como ato político. Aqui, onde o branco da baiana convive com a estampa africana do tecido wax, cada escolha de vestimenta pode significar resistência. Ao adentrar o espaço urbano com tranças coloridas, colares de búzios ou estampas afro, corpos negros dizem em alto e bom som: “não serei reduzido ao molde do outro”.
Nos anos 1960 e 1970, a explosão do movimento Black Power nos Estados Unidos ecoou também nas ruas de Salvador. Jovens negros, inspirados pela força estética de Angela Davis, James Brown e da cultura soul, passaram a experimentar uma moda que não mais queria se esconder. O cabelo crespo, antes alvo de alisamentos forçados pela norma social, tornou-se coroa. E, como nos lembra Bell Hooks, estética negra nunca é apenas beleza: é sempre resistência.
A moda, portanto, é política. Stuart Hall já nos alertava que identidade é um processo, uma constante negociação entre o que somos e o que desejamos ser. No caso da população negra, essa negociação sempre se deu sob a sombra do racismo, que classificava nossas roupas como inadequadas, nossa estética como perigosa, nossa criatividade como falta de disciplina.
Hoje, movimentos de moda afro-brasileira, de estilistas como Mário de Andrade (na Bahia) até jovens criadores do Subúrbio Ferroviário – a marca Dendezeiros, por exemplo – reivindicam não apenas a beleza negra, mas a legitimidade de nossa linguagem estética. Como lembra a pesquisadora brasileira Lélia Gonzales. Vestir-se, nesse sentido, é um ato de insurgência contra a homogeneização cultural.
No coração de Salvador, onde o Mercado Modelo vende berimbaus ao lado de tecidos vindos do Benim, a moda se torna ponte entre passado e futuro. O corpo negro, tantas vezes lido como ameaça, ressignifica-se como tela, manifesto e celebração.
A pergunta que fica é direta: até quando permitiremos que códigos de vestimenta eurocentrados continuem a ditar quem é “apto” ou “profissional”? Salvador já nos mostra que o futuro da moda não é bege, mas colorido, múltiplo, afrocentrado. A estética negra não pede passagem — ela abre caminhos.
Para saber mais leia:
• Bell Hooks – Black Looks: Race and Representation (1992)
• Stuart Hall – A identidade cultural na pós-modernidade (1992)
• Lélia Gonzalez – Por um feminismo afro-latino-americano (2011, coletânea póstuma de textos)
• Angela Davis – Mulheres, Raça e Classe (1981) (referida indiretamente pelo impacto estético/político do movimento Black Power)
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