Ana Maria Gonçalves: Mulher Negra e Imortal — A Primeira da História na ABL

Pela primeira vez em 128 anos de história, a Academia Brasileira de Letras (ABL) terá uma mulher negra entre seus imortais! A eleição da escritora Ana Maria Gonçalves, nesta quinta-feira (10), para ocupar a cadeira 33 da instituição representa não apenas a consagração de uma carreira literária excepcional, mas uma virada histórica contra a lógica de exclusão racial e de gênero que estruturou a elite intelectual brasileira desde o século XIX.

Ana Maria foi eleita com 30 votos, para a vaga deixada pelo linguista EvanildoBechara. Se tornando a primeira mulher negra a ultrapassar os portões da ABL, uma casa que, desde sua fundação em 1897 por Machado de Assis — ele próprio um homem negro frequentemente embranquecido nos registros históricos —, foi ocupada majoritariamente por homens brancos. Em mais de um século, apenas 12 mulheres haviam sido eleitas, todas brancas. Até agora, nenhuma mulher negra havia tido sua trajetória reconhecida nesse espaço, o mais simbólico da literatura nacional.

Essa ausência está longe de ser mero acaso. É reflexo direto de um país que, após quase quatro séculos de escravidão, jamais reparou integralmente os danos causados à população negra. O atraso imposto historicamente à educação de pessoas negras — resultado de políticas de marginalização, racismo institucional e falta de acesso — continua influenciando fortemente suas trajetórias acadêmicas e profissionais. Por décadas, escolas e universidades permaneceram inacessíveis, e o ingresso em instituições de prestígio como a ABL se tornou, na prática, um privilégio de poucos.

Ana Maria Gonçalves rompe esse ciclo. Autora do aclamado romance Um Defeito de Cor, ela deu forma literária à vida de Kehinde, uma mulher sequestrada na África, escravizada no Brasil e transformada em símbolo de resistência. Inspirada na figura histórica de Luísa Mahin, mãe do abolicionista Luiz Gama, a obra — escrita durante cinco anos e publicada em 2006 — vendeu mais de 180 mil exemplares, venceu o Prêmio Casa de las Américas, foi traduzida e adaptada para o carnaval carioca pela Portela em 2024. O livro é considerado, por críticos e leitores, uma das narrativas mais potentes da literatura brasileira contemporânea.

Natural de Ibiá (MG), Ana Maria abandonou a carreira de publicitária para se dedicar inteiramente à literatura. Em Itaparica (BA), berço de resistência negra no Brasil, escreveu Um Defeito de Cor. Sua produção também inclui o romance Ao lado e à margem do que sentes por mim e peças como Tchau, Querida! e Chão de Pequenos, onde as dimensões políticas e afetivas da existência negra são protagonistas.

Sua eleição para a cadeira 33 representa uma ruptura necessária e urgente na memória oficial da literatura brasileira. Para o movimento negro e, sobretudo, para as mulheres negras, a conquista de Ana Maria Gonçalves reafirma o direito à autoria, à intelectualidade e à presença em espaços historicamente negados. Sua vitória é também um gesto de reparação simbólica e uma convocação à reescrita dos cânones, com vozes que por tanto tempo foram silenciadas.

A presença de Ana Maria na ABL é mais do que uma conquista individual: é um marco coletivo. Ela escancara as portas para outras mulheres negras, jovens escritoras e pensadoras que sonham em ver suas histórias não apenas publicadas, mas reconhecidas, lidas e celebradas — como parte fundamental da formação da cultura brasileira.

 

Matéria por Alice Rodrigues

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