“Quando amar vira luxo: o preço invisível dos afetos pretos”

Amor no vermelho: relações afetivas negras sob o peso da desigualdade econômica

Em um país onde mais de 77% das famílias estão endividadas, segundo a Confederação Nacional do Comércio, e 73 milhões de pessoas têm o nome negativado (Serasa, 2023), o impacto da crise não se limita ao consumo. Ela alcança, silenciosamente, os afetos. Entre boletos, precarização e autoimagem fragilizada, relações afrocentradas — historicamente atravessadas por resistência e reconstrução — enfrentam agora um novo desafio: o custo emocional e financeiro de amar em tempos de escassez.

Para a população negra, o cenário é ainda mais grave. Segundo o IBGE, em 2023, pessoas negras (pretas e pardas) continuam sendo maioria entre os desempregados (65,2%) e entre os que vivem com menos de meio salário mínimo por mês (mais de 70%). Este abismo econômico interfere diretamente na forma como se vive — e sobrevive — ao afeto.

Ghosting econômico e dismorfia financeira: quando o amor some por falta de grana

Nas periferias de grandes cidades como Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro, expressões como ghosting econômico já circulam com naturalidade: trata-se de desaparecer de relações não por desinteresse, mas por não conseguir arcar com os custos — até mesmo os mínimos — de manter um vínculo. Um encontro casual, que envolve transporte, comida e tempo, pode facilmente ultrapassar R$ 200. Para milhões de pessoas, esse valor é impraticável.

Além disso, cresce o fenômeno da dismorfia financeira: distorções entre a realidade econômica e a forma como ela é apresentada socialmente. Segundo dados do Will Bank (2024), 55% dos brasileiros relatam desconforto físico ou emocional ao falar de dinheiro, e 99% reconhecem não ter clareza real sobre sua condição financeira. A consequência disso nas relações? Silêncio, evasão, ansiedade e performance.

Afetos negros e a ilusão da performance: o que a estética esconde

A busca por pertencimento e autoestima, especialmente entre jovens negros, muitas vezes esbarra em exigências de consumo que não condizem com a realidade material. O "date perfeito", o look da moda, o jantar instagramável e o rolê pago podem tornar-se exigências implícitas que minam qualquer tentativa de sinceridade. Para homens negros, a pressão de prover e "sustentar a pose" ainda está atrelada a estereótipos de masculinidade tóxica e colonial, como observa a psicóloga e pesquisadora Deborah Diniz: “a ausência de dinheiro muitas vezes é confundida com ausência de valor”.

Nas relações LGBTQIAPN+ negras, a economia do afeto também apresenta desafios específicos. A falta de políticas públicas para moradia, saúde mental e trabalho impactam diretamente a possibilidade de construção de vínculos. Em 2022, segundo a Rede Nossa São Paulo, 47% das pessoas LGBTQIA+ negras relataram já ter abandonado relacionamentos por insegurança material. Isso evidencia que, para além da discriminação, existe um teto financeiro que impede o florescer de novas famílias e afetos dissidentes.

Amor afrocentrado como projeto político: reinventar os vínculos na escassez

Diante desse contexto, relações afrocentradas — pautadas no cuidado, ancestralidade, equilíbrio e autonomia — propõem um caminho de reinvenção. Em vez da ostentação, a partilha. No lugar do consumo, a presença. Pesquisadores como Muniz Sodré e Cida Bento apontam que o afeto negro sempre foi um campo de resistência. Ainda hoje, dividir uma marmita, caminhar pela comunidade ou assistir a um filme num celular de tela rachada pode carregar mais ternura do que um jantar caro sem escuta.

Esse novo paradigma — às vezes chamado de amor low cost ou afeto realista — ganha força em redes sociais, coletivos afrodiaspóricos e nas conversas silenciosas entre os que aprenderam a viver com pouco. A simplicidade não desvaloriza a relação: ela a ressignifica.

 

Economia afetiva: um convite à honestidade e à coletividade

A crise econômica não só desafia os laços, ela também exige uma nova ética relacional. Ser honesto sobre a própria instabilidade, propor encontros viáveis e criar espaços onde a precariedade não seja motivo de vergonha — esses são os novos pactos de afeto possíveis. No Brasil onde a população negra é maioria (56%) e vive, em média, com 50% da renda dos brancos (IBGE, 2023), pensar relações afetivas negras é também pensar justiça social.

Como escreveu a filósofa Sueli Carneiro: “o amor é político”. E, nesse tempo de tanta escassez, talvez o mais radical dos gestos seja amar de forma realista, afetiva e coletiva. Com menos performance e mais presença.

Texto por Alice Rodrigues

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