“Ser Pai Não É Favor: Entre o Genitor e o Homem Presente”

"A maternidade é um lugar político. A paternidade, muitas vezes, é uma ausência com aplausos."

— Patricia Hill Collins

Ser pai não é fazer uma visita. Não é passar um fim de semana por mês, trazer uma mochila com roupa nova ou comprar o tênis de aniversário. E, definitivamente, não é tirar uma foto com a criança para postar no Dia dos Pais. Ser pai é assumir uma função contínua, afetiva, cotidiana e comprometida — nos mesmos moldes e com a mesma entrega que o mundo exige das mães, especialmente das mães solo.

No Brasil, segundo o IBGE (2022), mais de 11,5 milhões de lares são chefiados por mulheres sem cônjuge. E quando recortamos racialmente essa estatística, observamos que a imensa maioria dessas mulheres são negras, periféricas e sobrecarregadas. Como denuncia a filósofa Sueli Carneiro, vivemos sob um “racismo estrutural que se manifesta também nos afetos e nas ausências”.

A ausência paterna é um fenômeno social com raízes profundas em uma cultura patriarcal e eurocentrada que ensinou ao homem — e sobretudo ao homem negro — que sua masculinidade está associada à potência sexual e ao domínio, mas nunca ao cuidado.

Essa masculinidade forjada pela violência colonial desumanizou o homem negro, o reduziu à força bruta e ao estereótipo de “reprodutor”, desresponsabilizando-o afetivamente de seus próprios laços.

O peso do abandono e o silêncio da sociedade

O abandono paterno não é só físico — ele também é emocional, educacional, econômico e moral. Para a mulher negra que se torna mãe solo, não há espaço para escolha. Ela carrega a criança, amamenta, educa, protege, guia e luta. E, mesmo diante da omissão, ainda é julgada pela “ausência de um homem” no lar, como se fosse sua culpa.
A socióloga Patricia Hill Collins, em seu clássico Black Feminist Thought, aponta que as mulheres negras historicamente construíram formas alternativas de maternagem como resistência, pois foram forçadas a sobreviver e educar seus filhos em contextos de opressão múltipla — racial, econômica e de gênero.
Enquanto isso, a sociedade continua a premiar homens por ações mínimas. Um pai que "ajuda" é exaltado. Um pai que "busca na escola" é celebrado. Mas a mãe — essa não tem aplauso, tem cobrança, tem solidão, tem julgamento.

A paternidade como compromisso e dever

É urgente reconfigurar o lugar social da paternidade. É urgente dizer, sem rodeios: ser pai é um dever. É uma responsabilidade que começa antes do nascimento e não termina nunca. Estar presente emocional e fisicamente, dividir as tarefas parentais, educar com escuta e cuidado, construir vínculos genuínos — tudo isso é parte do ser pai. E não, isso não é extraordinário. É o mínimo.
Existem, sim, homens negros que vêm enfrentando esse sistema de dominação e têm assumido seu papel com dignidade, amor e responsabilidade. São exemplos vivos de que é possível romper o ciclo da ausência. Mas mesmo esses homens não devem ser tratados como “heróis”. Estão apenas fazendo o que deveria ser a norma.
Como bem afirma bell hooks em O Feminismo é para Todo Mundo, homens também precisam ser libertados dos papéis opressores que o patriarcado lhes impôs. Mas essa libertação só acontece através da responsabilidade. Assumir os filhos é um ato revolucionário quando feito com entrega e constância.

Caminhos possíveis: escuta, reeducação e enfrentamento do machismo

É preciso educar os meninos para o afeto, para o cuidado e para a responsabilidade. É preciso que os espaços públicos e privados convoquem os homens à ação — não como exceção, mas como regra. E, mais que tudo, é preciso escutar as mães solo. Elas sabem o que é estar só. Sabem o peso que carregam. E sabem, também, que a ausência masculina não é falta de capacidade — é falta de escolha, falta de coragem, falta de compromisso.
Reeducar os homens para a paternidade é um processo que passa por encarar o machismo de frente. E isso inclui falar da ausência dos próprios pais, do medo de se envolver, das fugas emocionais, da insegurança financeira e da naturalização de comportamentos irresponsáveis.

Mas isso não é desculpa. Não há cura para uma infância negligenciada que não passe pela escolha adulta de fazer diferente. Homens precisam parar de se esconder atrás do “eu não tive pai”. Precisam ser o pai que não tiveram.  Precisam, enfim, estar.

Referências para aprofundamento:
Patricia Hill Collins, Black Feminist Thought
Bell hooks, O Feminismo é para Todo Mundo
Sueli Carneiro, Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil
Neusa Santos Souza, Tornar-se Negro
Sidney Santiago Kuanza, ator e pai solo, ativista da paternidade preta
Instituto Promundo, estudos sobre masculinidades e paternidade no Brasil

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